Por César M. Borges
“O cravo brigou com a rosa
debaixo de uma sacada”
E faz tempo! Esta cantiga, de tão antiga, ninguém sabe quem a criou. Alguém foi. Mas quem?
A quem se paga cada vez que ela é cantada? Quem recolhe os direitos autorais?
Há quem sustente que a idéia de autoria é própria de uma sociedade burguesa. Aldeias e tribos do passado não demonstravam tal preocupação, mesmo porque não parecia haver ali a possibilidade de que alguém aspirasse a viver de arte. Tudo o que era criado – danças, cantos, lendas – pertencia à coletividade.
O argumento é coerente e digno de todo respeito. No entanto, há de se observar que o crédito da autoria já existia na Antiguidade. Se assim não fosse, não teríamos obras atribuídas a Platão, Aristóteles, Sófocles, Ésquilo, Safo, Virgílio, Cícero, Ovídio... Isto para citar alguns nomes, apenas... O que torna plausível o conceito de que a autoria tenha seu princípio ligado ao registro, à escrita. Sociedades mais complexas, mais organizadas em torno da escrita desenvolveram, também, a autoridade, a assinatura, a identidade do autor. Ao passo que sociedades menos complexas ou mais ligadas à tradição oral de transmissão de cultura e conhecimento diluíram a criação entre seus membros, na extensão do tempo e nos atributos da memória.
“Terezinha de Jesus
deu uma queda
foi ao chão”
A invenção da imprensa, o crescimento vertiginoso da publicação de livros e, posteriormente, o surgimento dos jornais popularizaram o ato de ler e, se não aniquilaram de vez as culturas de tradição oral, sobrepuseram-se a elas de tal forma a dar a impressão de que a cultura escrita passava a ser “a cultura”, ou uma cultura superior... E os autores viram seus nomes impressos...
Desde então, os avanços tecnológicos possibilitaram outras formas de registro: o som e a imagem encontraram a gravação no suporte físico da fita, do disco, da fotografia, da película cinematográfica, de seus desdobramentos e reproduções, ampliando o reconhecimento autoral, mas, também, dando impulso a uma poderosa indústria cultural que fez nascer a cultura de massas e passou a determinar padrões estéticos, moda, comportamento.
A indústria cultural não se opunha e não opõe, necessariamente, ao bom gosto, à sensibilidade, à invenção ou à inteligência... desde que estas vendam... desde que dêem lucro...
“Quem me ensinou a nadar,
quem me ensinou a nadar,
Foi, foi, marinheiro,
foi os peixinhos do mar”
Navegamos, hoje, pela rede mundial de computadores e somos arrastados por um mar de informações vagas, imprecisas.
Tornou-se bastante comum recebermos mensagens de auto-ajuda, com slide shows e fotomontagens de gosto duvidoso, contendo textos atribuídos a Mário Quintana, Charles Chaplin, Vinícius de Moraes, Fernando Pessoa... Ou, ainda, textos irônicos, chulos e preconceituosos atribuídos a Arnaldo Jabor ou Luís Fernando Veríssimo. Será que foram eles mesmos que escreveram? Alguém foi. Mas quem? É a autoria deturpada. É a autoria traída.
A indústria cultural alimentou o monstro que agora ameaça devorá-la. Subvertendo o dito, é possível afirmar que “tudo que é criado, é logo copiado”. Cópias ilegais, não autorizadas, pirataria na rede deste mar em que ninguém controla a pesca.
A indústria tenta conter os saques, tenta se adequar, tenta vender on line o que está na linha de seu anzol. No entanto, podemos, de fato, estar diante da fragmentação da cultura de massas... e recolhendo cacos de cultura.
Canções são “baixadas” fora de seus álbuns, poemas de Drummond circulam sem que seus livros sejam conhecidos, pinturas e fotos são tiradas de seus contextos, histórias narradas sem cronologia. É a autoria fragmentada, diminuída...
Se levarmos ao extremo a hipótese de que toda produção cultural possa ser adquirida, virtualmente, sem que se pague valor algum a quem realmente as produziu, a indústria agonizará.
Quem investirá tempo e dinheiro na produção de um filme se, antes mesmo dele ter cumprido seu circuito pelas salas de cinema, ele já puder ser visto pelos usuários de computador? Se antes de ser lançado em DVD, ou qualquer outro suporte que se crie, ele já tiver se convertido em uma cópia caseira?
Quem pagará horas de estúdio, contratará técnicos, engenheiros de som, produtores, arte-finalistas se, antes de estar nas lojas, o disco já tiver seu conteúdo espalhado entre os internautas? Se, antes de ser vendido pelos sites oficiais das gravadoras, o trabalho musical já estiver disponível em sites “alternativos”?
Quem publicará livros quando obras inteiras podem ser hospedadas em uma página da Internet?
Assistir a um filme não é simplesmente ver uma história. É um envolvimento muito maior que passa pela percepção da linguagem, dos cortes, da edição, dos efeitos, da trilha sonora, da fotografia. A tela do computador ou o televisor da sala não substituem, em absoluto, a experiência, a atmosfera que pode ser vivida em uma sala de cinema.
Um bom disco é muito mais que um apanhado de canções. É um trabalho que se constitui de arranjos instrumentais, vocais, letras e todo um empenho para se conseguir uma determinada sonoridade, uma identidade, um perfil integral de obra que chega à arte de capa e às notas de produção. Um conjunto de elementos que não podem ser reduzidos a um MP3, ou qualquer aparelho de bolso, e um fone de ouvidos.
O mesmo pode ser dito em relação ao livro. O tipo de letra, o papel, o arranjo formal do texto na página, a diagramação, a composição, a divisão de partes, capítulos, o espaço em branco, as ilustrações, a capa são, muitas vezes, escolhas minuciosas do autor, do editor e passam a integrar a natureza da obra como um todo. Algo que a leitura vertical, “rolada em bastão”, em uma tela ainda não é capaz de reproduzir ou substituir.
O objeto portátil em que se transformou o livro, o folhear, o ir e vir dos olhos e a própria postura física do leitor permitem uma forma de concentração e desfrute que os meios eletrônicos não conseguem, ainda, proporcionar.
A reprodução de um quadro não substitui uma visita à galeria. As dimensões reais de um quadro, as cores empregadas, o vigor das pinceladas não se transportam a outro meio.
Isto tudo não é uma mera questão subjetiva de gosto. É uma questão de formação. As experiências precisam ser reais, palpáveis, físicas e não deformadas, reformatadas...
Minha preocupação não é a sobrevivência da indústria cultural, dos seus meios de exploração e reprodução. Importa-me a sobrevivência do autor, do ser criativo e do seu diálogo com o outro (todos nós).
Talvez estejamos prestes a presenciar uma grande mudança nos meios de produção da arte. Um movimento, que não é novo, parece apontar uma tendência para que o artista seja autônomo, independente.
Fenômenos mundiais, grandes nomes nacionais, mitos e lendas da cultura de massas continuarão a ser ídolos, referências de um já quase passado.
O artista provavelmente voltará à sua aldeia, tentará ser conhecido, reconhecido pelos seus e, se tiver sorte, pelas aldeias vizinhas... retecendo sua própria rede...
“O anel que tu me destes
era vidro e se quebrou
O amor que tu me tinhas
era pouco e se acabou”.
Indicações para leitura:
CASHMORE, Ellis. ...e a televisão se fez! Tradução Sonia Augusto. São Paulo: Summus, 1998.
COSTA, Antonio. Compreender o cinema; tradução Nilson Moulin Louzada. São Paulo: Globo, 2003.
EMERICK, Geoff. HOWARD, Massey. Here, There and Everywhere: my life Recording the music of The Beatles. New York: Gothan Books, 2006.
MILLER, Jonathan. As idéias de McLuhan; tradução Octanny Silveira da Mota, Leônidas Hegenberg. São Paulo: Cultrix, 1982.
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: A “literatura” medieval; tradução Amálio Pinheiro, Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
Conheça um pouco mais o trabalho do autor:
Escritor e professor universitário, César Magalhães Borges desenvolve um trabalho literário, desde 1980, que envolve poesia, contos, crônicas, canções, roteiros para teatro e histórias infantis.
Autor independente, César já lançou os livros:
- Passagem (poemas e crônicas) - 1985
- Contrastes (poemas) - 1987
- Canto Bélico (poemas) - 1994
- Bolhas de Sabão (infantil)- 1998
- Ciclo da Lua (poemas)- 1999
- Três Acordes (infantil)- 2003
- Folhas Soltas (poesia incidental)- 2006